por Thea Tavares
“Se me der vontade de ir embora
Vida adentro, mundo à fora,
Meu amor, não vá chorar.
Ao ver que o cajueiro anda florando,
Saiba que estarei voltando,
princesa do meu lugar”
(Belchior)
Demorei para compreender as palavras de um amigo, que costumava comparar a paisagem de sua terra natal, plana, com o relevo mais acidentado de outras localidades brasileiras. Tirava disso algumas reflexões sobre os jeitos e costumes da gente de cada lugar. Já se vão uns bons anos desde essa conversa, mas ele dizia mais ou menos assim: – Não troco a sensação de liberdade e de oportunidades que me dá ao olhar para esse imenso campo aberto e sem fim da minha terra.
E emendava: – a gente enxerga longe! Eu posso ir muito mais longe, perseguindo esse horizonte invisível e distante, porque parece que é um caminho que não tem fim.
– Em uma região montanhosa, por exemplo, ainda que diante de uma paisagem exuberante ou de tirar o fôlego, se eu não enxergo o horizonte, há mais obstáculos, barreiras que restringem, limitam o alcance da minha visão, pois diminuem as distâncias para enxergar ou perseguir e querer desvendar, dizia ele.
Deixando a profundidade de lado, sempre que pego a estrada e saio por esse mundão velho de Deus, naturalmente sem porteiras, vou observando as paisagens que se descortinam à frente e tento adivinhar suas gentes. Nessas horas, reflito novamente sobre as palavras do meu amigo, até porque viajar combina com introspecção e faz da gente analistas por excelência.
Passo ao lado e ao largo de histórias que acontecem dentro das casas, nas ruas, nas estradas e que vão ficando para trás, enquanto viajo e capto, sorrateira, essas referências todas, carregando minha própria bagagem de vivências, conflitos, decisões e projetos. Se paro ou desembarco em algum ponto desse caminho e interajo com as pessoas e suas realidades, percebo que não são só as paisagens que mudam, mas todo um conjunto de referências, de costumes, traços culturais e de memórias. Tem beleza e muita riqueza de informações nessa diversidade histórica e social.
É, a bem da verdade, uma fonte inesgotável de conhecimentos para quem gosta de conversar, descobrir o novo e aprender com as pessoas, a cada dia e a cada encontro. Cada lugar tem suas peculiaridades, que remetem ao seu povo um encanto todo próprio também. Cabe à gente enxergar essa diversidade, valorizá-la, sentir e se importar. “Amar e mudar as coisas me interessa mais”, cantava o sobralense e cidadão do mundo, poeta Belchior, alucinado por suportar o dia a dia e que definia seus delírios como experiências com coisas reais.
Mesmo a menor e menos significativa transformação da realidade só acontece se motivada por um misto de conhecimento, de apego, de compromisso e de sensibilidade. Achava que fosse uma pessoa mais espontânea e dona de uma impulsividade natural, daquelas de gente pouco chegada a cerimônias, mas depois de mais de três décadas me aculturando em Curitiba, já percebo diferenças e uma moldura de comportamento social mais condizente com o ambiente em que me vejo inserida.
Estava em uma praça de alimentação de um shopping de Brasília, quando percebi uma mulher, um pouco atrás, acompanhada de um grupo de familiares, tentando decidir o que escolher entre as opções do cardápio. A senhora, falante liderança daquela galera, não tirava o olho do prato que eu havia pedido para almoçar.
Senti um toque no ombro:
– Moça, moça!
Pelo menos, ao chamar de “moça”, já se aproximava com agrados e isso meio que desarma a gente um pouco.
Apontando para minha comida (o parceiro do Batman, o Robin, se curitibano, chamaria aquilo de santa invasão de espaço territorial da pessoa!), continuou:
– Que porção é essa que você pediu? Qual é esse prato no cardápio? (“Tira o olho da minha comida, mulher”! Pensei. Faz mal isso, será? Porque pela fome que a infeliz denunciada, poderia se passar pelo tal do olho gordo que dizem, né mesmo?)
– Se não tiver pimenta, é esse que eu quero, viu, menina!?
Prosseguiu a senhora, a partir daí, já dirigindo toda sua atenção e simpatia à funcionária no balcão.
O alerta curitiboca de intimidade excessiva estava acionado, apitando, pois estranhou aquele descarrilamento verbal. Mas logo esse desconforto deu lugar a uma sensação mais calorosa, aceitável e tolerante. Precisava me desprender do frio e cômodo isolamento e blindagem com que nos convencionamos vestir antes de sair de casa para evitar se relacionar com as pessoas lá fora. “Não fale com estranhos”, aquela preleção para crianças em qualquer cultura e coordenada geográfica, em Curitiba foi assimilada no seu grau máximo e sentenciada quase que como o decreto de uma pena de prisão perpétua. Não se relacionar ou escolher muito a dedo, da forma mais otimizada e calculada possível como estabelecer as bases dessa interação é quase um sacramento religioso. Quem consegue seguir à risca esse pragmatismo, merece até selo de eficiência na convivência social.
Exageros literários à parte, claro que não é para se nortear nem por um extremo e nem por outro. Não vale também sair por aí pagando o mico de dar bom dia a cavalo ou a manequim de loja, mas vale, sim, de vez em quando, sair da concha e responder aos estímulos que a vida nos presenteia todos os dias. Olhar para o tal campo aberto de oportunidades, que meu amigo sul-matogrossense descreveu como característica essencial do modo de vida na sua terra natal, mora também nos pequenos cumprimentos, sorrisos, cordialidades, bem como nos menores e mais inusitados contatos que estabelecemos com as pessoas ao redor, no nosso dia a dia.
Sem apegos que extrapolem os limites das nossas desconfianças, receios saudáveis e autoconhecimento, as férias, o sol no rosto, o verão em si e esse recomeço próprio de início de ano nos convidam sem qualquer pompa a sermos mais leves e receptivos à vida… Às belezas, simplicidades, desafios e às bênçãos da nossa vidinha mais ou menos de todos os dias.
Temos raízes e essências que, ao mesmo tempo que nos diferenciam, também universalizam, justamente pela interação e pela combinação de todas essas distinções. É enriquecedor, promove respeito e amizades. Que a gente se presenteie com essa renovação e com essa abertura. Um 2020 desafiador e que nos anime a ir além.