16:52Somos governados pelos últimos da classe

… Mas por que, logo hoje, penso nos últimos da classe? É por causa da Amazônia. Cada dia mais, se confirma a impressão de que estamos sendo governados pelos últimos da classe, os preguiçosos seletivos que se dedicam a uma atividade incessante de provocações, declarações, contradeclarações, reuniões, alianças e rompimentos sem nenhum interesse pelo que seria preciso estudar. No caso, o que seria preciso estudar são os relatórios, que apodrecem em cima das mesas dos preguiçosos e que são desmentidos e recusados antes de serem lidos.

Para os preguiçosos, qualquer esforço político (aliança com os grileiros, as mineradoras ou os ongueiros?) ou retórico (a Amazônia é nossa, taratatá!) parece preferível ao suplício de ler e pensar. Aliás, para evitar ler e pensar, melhor desacreditar as próprias agências do Estado que fornecem dados técnicos básicos sobre fogo e desmatamento.

Cristo disse que os últimos seriam os primeiros. Ora, 1) isso está previsto para o reino dos céus, não para o Brasil, 2) tudo indica que ele pensava nos humildes, não nos últimos da classe.

de Contargo Caligares, em artigo na FSP

Os preguiçosos

Há a impressão de que estamos sendo governados pelos últimos da classe

Nos anos 1950 e 1960, os alunos que não estudavam, não prestavam atenção, não faziam os deveres de casa etc. eram, obviamente uns baita preguiçosos.

Eram chamados “os últimos” da classe —últimos nas notas e sentados na última fileira da sala.

Bagunçavam as aulas, mandavam os professores à merda, iam para a direção zombando e falavam de sexo (desafiando o pudor de meninas e meninos). Muitos eram repetentes (na época, não se avançava de ano por senioridade).

Eles inspiravam em nós (das primeiras fileiras da classe) uma ponta de admiração porque pareciam não sentir culpa alguma.

Desde o fim dos anos 1960, não há mais jovens “preguiçosos”.

A “preguiça”, se existe, não é mais um defeito moral, ela deve ser o efeito de dificuldades cognitivas, familiares ou sociais.

Ao redor da questão da preguiça, seria possível dividir esquerda e direita. Para a esquerda, em tese, os preguiçosos são só vítimas, paralisadas por injustiças e violências. Para a direita, injustiças etc. são desculpas para vagabundo fugir do pé na bunda, que é a única coisa da qual ele precisaria.

Nesse debate, não é preciso tomar uma posição firme. Já diagnostiquei uma dislexia onde os pais e a escola só viam a prova de que o filho era vagabundo. Conheci crianças supostamente “desatentas”, mas que, de fato, não enxergavam a lousa porque eram míopes. Também é óbvio que crescer numa casa em que todos leem e trabalham é muito melhor do que crescer numa casa em que ninguém lê e o pai dorme até tarde porque vira a noite jogando videogames.

Já mencionei que “os últimos” da minha classe pareciam não sentir culpa alguma. A preguiça escolar deles era possível porque eles não internalizavam a lei, ou seja, porque tinham uma dose precoce de psicopatia.

Injustiças sofridas ou psicopatia, nada disso suprime a responsabilidade do indivíduo, que estuda ou não, faz a lição de casa ou não, respeita a lei ou não.

Um aparte antes de avançar: entre os séculos 19 e 20, a preguiça foi elogiada como um valor oposto à ética do trabalho, que triunfava no capitalismo e triunfaria, logo depois, no socialismo. Os que elogiaram a preguiça, desde a antiguidade grega ou latina até Paul Lafargue (“O Direito à Preguiça”), não tinham simpatia alguma pelos últimos da classe. O lazer que eles defendiam era o do Jardim de Epicuro: lazer significava tempo para focar o que importa, tempo para ler, escrever, pensar…

Volto aos meus preguiçosos. Aprendi com eles que a preguiça é seletiva: ela não se confunde com uma depressão que deixaria qualquer um na incapacidade de sair da cama.

Os últimos da classe não eram deprimidos nem inertes. Ao contrário, numa atividade incessante, eram implacáveis na invenção de estupidezes e boçalidades assim como na composição de alianças e inimizades. Sua vida social era a razão de um empenho constante.

Por exemplo, na própria sala de aula, eles mantinham um show permanente; era só se virar, e havia um com o membro na mão (tentando chamar a atenção de uma menina) ou outro mostrando a bunda enquanto um professor escrevia na lousa. Nos corredores ou na rua, bullying e gozações eram os instrumentos de uma incessante política de alianças e rompimentos.

Por isso, eles eram irremediavelmente medíocres, mas desenvoltos, soltos e, aos olhos de alguns, invejáveis.

Mas por que, logo hoje, penso nos últimos da classe? É por causa da Amazônia. Cada dia mais, se confirma a impressão de que estamos sendo governados pelos últimos da classe, os preguiçosos seletivos que se dedicam a uma atividade incessante de provocações, declarações, contradeclarações, reuniões, alianças e rompimentos sem nenhum interesse pelo que seria preciso estudar. No caso, o que seria preciso estudar são os relatórios, que apodrecem em cima das mesas dos preguiçosos e que são
desmentidos e recusados antes de serem lidos.

Para os preguiçosos, qualquer esforço político (aliança com os grileiros, as mineradoras ou os ongueiros?) ou retórico (a Amazônia é nossa, taratatá!) parece preferível ao suplício de ler e pensar. Aliás, para evitar ler e pensar, melhor desacreditar as próprias agências do Estado que fornecem dados técnicos básicos sobre fogo e desmatamento.

Cristo disse que os últimos seriam os primeiros. Ora, 1) isso está previsto para o reino dos céus, não para o Brasil, 2) tudo indica que ele pensava nos humildes, não nos últimos da classe.

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