por Fernando Muniz
Caranguejos se arrastam pela casa. Pequenos, não mais que dois ou três. Um anão nota o movimento. “Madame, seus convidados acabaram de chegar”. Ela solta um grito, busca a vassoura e os esmaga. Varre as carcaças e as entrega ao anão. “Leve-os daqui”!
“Como queira. Mas isso é inútil, a madame sabe muito bem”. Apanha no bolso um relógio que derrete feito vela. Franze o cenho e se dirige para a carroceria de um Rolls Royce, jogada no meio da sala, convertida em viveiro de plantas aquáticas. Carnívoras.
“Não importa se eles foram convidados ou não. Faça alguma coisa, caríssimo!” Estranha o tom formal do anão e devolve na mesma moeda. Ele despeja os restos dos hóspedes sobre o que já foi o assento dianteiro da relíquia. As plantas dão conta da refeição em segundos.
Ela vai para o quarto e se senta junto à cama de casal. Quer se livrar dos detritos grudados no rosto. Opta por se lavar com lágrimas de Francisco Franco – esse ritual sempre a acalma, não importa o perigo que corra ou a tensão que esteja a sofrer.
Logo começam a surgir mais caranguejos, também exterminados pela madame, impaciente com o fato de não haver prova de terem sido convidados a pernoitar. “A burocracia e seus homens minúsculos já não é mais como antigamente, você sabe? Naquela época tudo era melhor, mais previsível e elegante”. Fala às paredes, pois o anão está envolvido com o descarte dos novos detritos.
“Já disse a você para fazer alguma coisa que os proíba de entrar”! Quase fica feliz ao encontrá-lo perto do Rolls Royce-viveiro. “Isso é inútil, já lhe disse” – o anão termina de alimentar as plantas, fecha-se no banheiro e troca de roupa.
Coloca um traje de domador de feras, calça de listras vermelhas e brancas, além de um colete amarelo, com lantejoulas. “O circo já chegou. Preciso ir”. Apanha alguns amendoins em um jarro-capacete de soldado, para dar de comer ao elefante com pernas de garça que o levará de casa ao circo, pelo deserto inclemente nos fundos da casa.
“Circo? De jeito nenhum! Você não pode me deixar aqui sozinha. Preciso da sua ajuda”. O anão coloca um par de botas ortopédicas, pretas, bem lustradas, apanha o boné de domador, o chicote, os amendoins e se dirige à porta. Esmaga um caranguejo, em sinal de respeito. “Boa noite, madame. O sol acaba de nascer. É chegada a minha hora”. Aquele tom formal, desnecessário, a irrita.
Fica de vigília, à espera dos burocratas minúsculos. Quer saber quem definiu as novas regras de tráfego em sua casa. Passam muitas ideias pela sua cabeça, ruidosas e extensas, transportadas por uma caravana de camelos do tamanho de pulgas, que levanta poeira entre as suas orelhas. O som dos camelos a faz dormir.
Sonha que está cozinhando um jantar imaculado para dois filhos insípidos e um marido inodoro, junto a um jardim com rosas vermelhas exatamente iguais em altura e cor. Na verdade são a mesma rosa, repetida centenas de vezes. Arranjo que causa admiração nos filhos, também idênticos entre si, apesar de um ser quase criança e o outro praticamente idoso. O marido sorri para ela, satisfeito; na boca não há qualquer dente.
Acorda de sobressalto, com o fedor de mangue que invade a casa. E pelos gritos do anão, que instiga dois tigres alados contra uma cambada de caranguejos de três metros de altura, enfurecidos. Quem sabe estão em busca dos filhos – não é possível saber ao certo, visto nada ter sido confirmado pelos burocratas, muito menos as pessoas ou criaturas costumam ser sinceras nos tempos atuais.
Sobre a cabeça da madame dois olhos que tudo veem não deixam de notar a belíssima cama em ela se encontra. Seu quarto é a céu aberto, incrustado em um promontório, com o mar a lamber os pés da cama. A torneira de onde jorram as lágrimas de Franco fica próxima à cabeceira, pronta para ser usada em situações de perigo, como agora.
Aliás, é hora de se banhar para um novo pretendente, pois o anão acaba de ser engolido por um dos caranguejos. O monstro que o extermina parece ser o líder – e isso a atrai.
Pensa se deve entregar a ele os filhos que teve com o anão. Ou se os joga às plantas aquáticas, em retribuição pelos caranguejos que esmagou.