por Fernando Muniz
Sempre foi fiel. Talhado para não discutir as razões do seu ofício. Pais, mães, filhos, adultos, crianças, bandidos ou homens de fé, em cadeiras de roda ou no máximo do vigor físico, nunca coube a ele ponderar, instrumento ao dispor do coronel feito garrote, facão ou espingarda.
A mulher e os filhos sentiram-se bem na casa dos serviçais junto à sede. Achou isso bom, porque cansado de rodar o mundo sem pouso nem esperança.
Não faltaram água e comida nos anos de vacas gordas. Aprenderam a ler, escrever e a fazer contas com a senhorinha do coronel. Sobrava até mesmo um troco para idas à cidadezinha no são João ou na época do Natal. Só que a meninada não brincava com os filhos nem os moradores conversavam com a esposa. Ele, então, nem boa tarde recebia.
Não que isso o abalasse; homem de poucas palavras, nunca suportou gente da cidade, de cabeça fraca, que gosta de conversa fiada e de meter o nariz na vida alheia. Aliás, vez ou outra o coronel o despacha para dar jeito em um deles. Serviço que executa com gosto.
Mas em tempos recentes as vacas emagreceram. Todas mortas, assim como as cabras, galinhas e jumentos. A família começa a reclamar, de fome. Não deu importância. Ameaçaram ir embora. Pensou em resolver o assunto à sua maneira, mas ponderou que, afinal de contas, era a sua mulher e, aquelas crianças, seus filhos. Além do que a grita era generalizada; ninguém mais aguentava a penúria.
Após o coronel autorizar todos se foram, sob a condição de que os homens ficassem para proteger a propriedade.
O próprio lugarejo definha. Ao padre só resta abençoar os retirantes e trancar a porta da igreja. Sequer olha para trás, aliviado por se livrar dali. Ralha com a turba, que insiste ser o desastre obra do Sassafraz, mancomunado com o coronel e seus pistoleiros.
O poço seca; para comer, só mandacaru. Bate saudade da mulher e filhos. Pela primeira vez se pergunta onde estariam, se chegaram bem à capital, se precisam de alguma coisa. Resolve ir atrás deles.
Vai conversar com o coronel, que se sente desrespeitado pelo rumo da conversa. Recebe dezenas de chicotadas, desferidas por um caolho responsável pelos piores trabalhos da fazenda, como esfolar posseiros.
Jogado na cama da casa dos serviçais, ocupado com as feridas, sente o ódio subir à cabeça. Volta-se à sede, onde um lampião ilumina o escritório em que o coronel, abandonado feito ele, remói sua ruína.
Busca a pistola; gira o tambor e vê estar cheio. Suficiente para o coronel, o caolho e mais dois outros infelizes que dormem ao relento, acompanhados por lagartos e escorpiões.
Na porta de casa nota que o lampião foi apagado. Passa a mão na testa; dali a pouco tudo estará terminado e ele, livre. Solta um suspiro. É só um pequeno esforço, nada extraordinário; todos estão desprevenidos. Nem cachorro existe mais para dar o alarme.
Tenta dar o primeiro passo, mas não consegue. Lembra-se dos endividados que vez ou outra espanca por ordem do patrão. Gente ordinária, sem palavra, sem dignidade. Olha-se no espelho, na verdade um pedaço de penteadeira antiga, retorcido de tão velho. Passa a mão nas feridas, mais uma vez. E desaba. Retorna à cama com ar cabisbaixo, submisso.
Pensa na mulher e filhos, longe, na capital; talvez um dia os tenha de volta.