por João Pereira Coutinho
… aproveito para responder a cinco leis dos livros de autoajuda que corrompem muitas cabeças desesperadas.
1ª: “Encontre o seu verdadeiro eu”.
Ridículo. Não existe nenhum “verdadeiro eu”, uma espécie de personalidade original a salvo de todas as máscaras sociais. Nós somos o produto dessas máscaras –as mesmas que nos permitem ser diferentes pessoas em diferentes contextos. Algumas podem ser nocivas, sem dúvida. Mas é através de um novo ato de imaginação, e não de “purificação”, que somos capazes de mudar de máscara.
A busca da “autenticidade” é uma fantasia patológica que nega a nossa condição de seres artificiais. Vivemos, não quando nos “descobrimos” –mas quando nos “reinventamos”.
2ª: “Ame quem você é”.
Por amor de Deus, não faça isso. Não existe nenhuma “identidade” fixa para você amar. Além disso, amar quem você é pressupõe um conceito de naturalidade que, para além de inexistente, pode ser perigoso: nem tudo o que você é “naturalmente” é aceitável ou louvável.
Se todas as pessoas “aceitassem” o que são (passivamente e sem vontade de mudança), a sociedade era uma selva. Só existe civilização porque as pessoas não se apaixonaram por elas próprias.
3ª: “Visualize o que deseja e a felicidade virá”.
A sério? Esse conselho assenta em duas falácias: a ideia de que o mundo é coerente e estável e a ideia de que você é coerente e estável. Nenhuma das premissas sobrevive a uma indagação empírica.
O mundo é atravessado por contingências que não dependem da sua exclusiva vontade (oportunidades imprevistas, crises imprevistas etc.). E você faz parte dessa indeterminação (amores imprevistos, doenças imprevistas etc.). O tempo transforma-nos –e não apenas biologicamente.
4ª: “Confie nos seus instintos”.
É um bom conselho –se você é um animal. Fugir de predadores, procurar comida, encontrar uma caverna para dormir etc. Nos seres humanos, os instintos podem ser apenas medos, aspirações irrealistas, falsas certezas.
Por outro lado, a noção de “espontaneidade” não significa seguir instintos ignaros. Em qualquer profissão, em qualquer existência, o que chamamos “espontaneidade” é, na verdade, uma “espontaneidade treinada”: depois de assimilarmos a racionalidade da técnica, elevamo-nos acima da técnica –instintivamente. Um bom cozinheiro, ou um bom pianista, sabe disso.
5ª: “Existe um livro que revela o plano”.
Nunca acredite em nenhum livro ou plano. Seguir um plano significaria duas coisas.
Primeiro, você não saberia lidar com todas as complexidades que escapam à rigidez do plano. E, segundo, você não saberia reconhecer caminhos alternativos: com os olhos fixos na felicidade prometida, você seria cego para a potencialidade dos entretantos. Confiar no plano é limitar uma vida.
Negócio da autoajuda bebe de águas ilusórias que corrompem cabeças
Escrever um livro de autoajuda? Já pensei no assunto. A culpa é de um amigo editor que, sazonalmente, lá aparece com suas vestes de serpente. “Um pseudônimo, dez leis fundamentais, fortuna garantida”, proclama o diabrete.
Rio sempre. Mas, aqui entre nós, já experimentei o embuste no segredo do lar. Impossível. Dez páginas de escrita e já estou a explodir todos os mitos dos livros de autoajuda. É a triste verdade: a única coisa que sou capaz de escrever são livros de antiajuda. Mas quem quer lê-los?
Pelos vistos, muita gente. Percebi isso depois de ler “The Path”, de Michael Puett e Christine Gross-Loh. Verdade: o livro, apesar do título enganador, é um estudo sério sobre filósofos chineses como Mencius, Laozi, Xunzi e o inevitável Confúcio.
E os autores dispensam apresentações: Michael Puett é professor da Universidade Harvard e o seu curso sobre filosofia oriental é o terceiro mais concorrido da universidade (depois de economia e engenharia informática). Christine Gross-Loh, graduada pela mesma universidade, é uma reputada jornalista americana.
O livro só é de antiajuda porque, acertadamente, identifica o molde intelectual dominante no Ocidente: uma curiosa mistura de calvinismo com iluminismo. Ou, simplificando, uma doutrina que convida os seres humanos a encontrarem o seu “plano” de salvação pessoal e a seguirem-no com obstinação racionalista. O negócio da autoajuda bebe dessas águas.
São águas ilusórias, defendem os autores. E eu, deslumbrado pela inteligência deles e dos filósofos que eles apresentam, aproveito para responder a cinco leis dos livros de autoajuda que corrompem muitas cabeças desesperadas.
1ª: “Encontre o seu verdadeiro eu”.
Ridículo. Não existe nenhum “verdadeiro eu”, uma espécie de personalidade original a salvo de todas as máscaras sociais. Nós somos o produto dessas máscaras –as mesmas que nos permitem ser diferentes pessoas em diferentes contextos. Algumas podem ser nocivas, sem dúvida. Mas é através de um novo ato de imaginação, e não de “purificação”, que somos capazes de mudar de máscara.
A busca da “autenticidade” é uma fantasia patológica que nega a nossa condição de seres artificiais. Vivemos, não quando nos “descobrimos” –mas quando nos “reinventamos”.
2ª: “Ame quem você é”.
Por amor de Deus, não faça isso. Não existe nenhuma “identidade” fixa para você amar. Além disso, amar quem você é pressupõe um conceito de naturalidade que, para além de inexistente, pode ser perigoso: nem tudo o que você é “naturalmente” é aceitável ou louvável.
Se todas as pessoas “aceitassem” o que são (passivamente e sem vontade de mudança), a sociedade era uma selva. Só existe civilização porque as pessoas não se apaixonaram por elas próprias.
3ª: “Visualize o que deseja e a felicidade virá”.
A sério? Esse conselho assenta em duas falácias: a ideia de que o mundo é coerente e estável e a ideia de que você é coerente e estável. Nenhuma das premissas sobrevive a uma indagação empírica.
O mundo é atravessado por contingências que não dependem da sua exclusiva vontade (oportunidades imprevistas, crises imprevistas etc.). E você faz parte dessa indeterminação (amores imprevistos, doenças imprevistas etc.). O tempo transforma-nos –e não apenas biologicamente.
4ª: “Confie nos seus instintos”.
É um bom conselho –se você é um animal. Fugir de predadores, procurar comida, encontrar uma caverna para dormir etc. Nos seres humanos, os instintos podem ser apenas medos, aspirações irrealistas, falsas certezas.
Por outro lado, a noção de “espontaneidade” não significa seguir instintos ignaros. Em qualquer profissão, em qualquer existência, o que chamamos “espontaneidade” é, na verdade, uma “espontaneidade treinada”: depois de assimilarmos a racionalidade da técnica, elevamo-nos acima da técnica –instintivamente. Um bom cozinheiro, ou um bom pianista, sabe disso.
5ª: “Existe um livro que revela o plano”.
Nunca acredite em nenhum livro ou plano. Seguir um plano significaria duas coisas.
Primeiro, você não saberia lidar com todas as complexidades que escapam à rigidez do plano. E, segundo, você não saberia reconhecer caminhos alternativos: com os olhos fixos na felicidade prometida, você seria cego para a potencialidade dos entretantos. Confiar no plano é limitar uma vida.
*Publicado na Folha de S.Paulo