de Fernando Muniz
O rio passa rente à choupana, preguiçoso naquele trecho após descer da cordilheira por entre fendas e precipícios. Em dias de chuva é possível ouvir o estrondo das águas montanha abaixo, belo e infernal.
Sereno feito o rio, com o rosto desenhado por rugas, um barqueiro descasca uma tangerina sentado em um tamborete, entre a choupana e um trapiche. Ali, distante do mundo salvo um ou outro viajante atrás de sua barcaça para cruzar o rio, ele suspira pelos filhos há muito perdidos e dos quais não chegam notícias, além das mulheres que seguiram a trilha dos andarilhos, cansadas do isolamento e da dura faina de manter a barcaça em ordem para atender a uma freguesia incerta. Pensamentos carregados, que cansam a cabeça do velho, feito a água lodosa que engorda o rio e dificulta a navegação naquele ponto.
“Pelo menos essa água vai embora e se perde no mar”, diz o barqueiro para as árvores ao seu redor. “O rio nunca é a mesma coisa, sempre muda”, matuta mais um pouco enquanto acompanha um tronco emergir e sumir em meio às águas turvas. “Mas ser sempre diferente acaba deixando o rio igual, pois ele continua a passar por aqui, cortando a terra em dois pedaços”, continua envolto em suas ideias e a mastigar os gomos da fruta. Joga as cascas em uma lata suja e furada, pega um facão e vai cortar umas folhagens que atrapalham a sua visão do rio.
Não sabe de onde surgem aquelas ideias. Homem sem instrução ou conhecimento das letras ou dos números, sabe navegar a barcaça porque aprendeu o ofício com o pai, que havia aprendido com o pai dele. “A chuva, quando cai, torna o rio brabo, um cavalo chucro, arranca árvores e engole bichos, mas depois amansa e corre tranquilo. Sempre é assim”. A cabeça do barqueiro começa a doer, feito as suas mãos, feridas pela mata que avança sobre a trilha que leva ao trapiche.
Mais de uma mulher o deixara porque ideias assim atrapalhavam a labuta. A mania de admirar pedras, plantas e animais o deixam pasmo em plena luz do dia, algo que virou lenda na região. Seus vizinhos pararam de visita-lo por medo de pegar a mesma doença, ou, pior, serem possuídos por algum espírito do mal. Só pode ser isso o que acontece com o barqueiro, explicam os mais velhos nos vilarejos ao redor. A criançada costuma visitá-lo vez ou outra; prova disso são as vidraças da choupana, estilhaçadas.
Ninguém leva a sério o seu palavrório pouco prático, quase alucinado, prenhe de comparações insólitas entre o que acontece com os homens e o que surge da terra, das águas ou do ar. Ele, com o tempo, parou de procurar convívio. Melhor ficar ali, à espera da freguesia cada vez mais rara, envolvido pelo gorjeio dos pássaros e o barulho do vento entre as árvores.
Cata outra tangerina e começa a descascá-la. “Não é a mesma fruta, mas o gosto é igual”. Antes que ganhem raiz, tronco e galhos dá um basta àquelas ideias. É hora de tentar a sorte com a pescaria, pois não dá para viver só de frutas.
Segue para o trapiche, sem nada temer, apesar de ouvir o riso cruel de alguns garotos, atrás dos arbustos no fundo da casa. O medo não o atinge porque tem, junto de si, todos os mistérios do mundo.