por Drauzio Varella
Até a última batida do coração do marido, dona Ana esteve ao lado.
Não foi fácil.
Seu Antônio era educado e agradável no trato social, mas intempestivo, intolerante e voluntarioso com a mulher e os dois filhos. Dava a impressão de que as interações com pessoas pouco íntimas esgotavam na rua seu estoque de tolerância.
Aos sete anos, vendia de casa em casa os pasteis que a mãe viúva fritava, enquanto os cinco filhos ainda dormiam. Aos 15, veio sozinho para São Paulo com a obrigação de ganhar o sustento da família.
Dormiu três dias na rua antes de conseguir emprego num depósito de ferro-velho.
Quando ficou doente, aos 68 anos, tinha mais de 200 empregados, duas fazendas e uma imobiliária para administrar os imóveis de sua propriedade.
Dona Ana tinha três irmãs e um pai militar que proibia as filhas de chegar depois de escurecer e que só permitia que ela saísse com o noivo aos domingos, desde que estivesse acompanhada pela irmã caçula, rotina mantida até a semana anterior ao casamento.
Casada, aceitou sem rebeldia o autoritarismo do consorte. Deu à luz dois filhos, criados com o rigor do pai e a dedicação abnegada da mãe, num ambiente doméstico que beirava a esquizofrenia: alegre e descontraído na presença dela, sisudo e silencioso à chegada do pai.
Quando nasceu o casal de netos, a avó os cobriu de carinho. Passava os dias de semana com eles para que as noras pudessem trabalhar; nos fins de semana em que ficava sem vê-los, morria de saudades.
A doença do patriarca mudou a rotina. Com o marido em casa e os filhos ocupados na condução dos negócios do pai, coube a ela cuidar e atender às solicitações do doente, que exigia sua presença dia e noite e não aceitava um copo d’água das mãos de outra pessoa.
Nas fases finais, oito quilos mais magra, abatida e sonolenta, parecia mais debilitada do que o marido doente.
Viúva, fez questão de permanecer no mesmo apartamento, apesar da insistência dos filhos e das noras para que fosse morar com eles.
Os familiares estranharam quando pediu que não deixassem mais os netos com ela. Acharam que a perda do marido havia causado um trauma que lhe roubara a felicidade e a disposição para a lida com os pequenos, suspeita que se agravou quando constataram que a mãe não os procurava. Nos fins de semana, era inútil convidá-la para as refeições, para ir ao cinema ou viajar com eles. Quando as crianças queriam vê-la, os pais precisavam levá-las até ela.
Numa dessas ocasiões, filhos e noras tentaram convencê-la a procurar um psiquiatra. Um medicamento antidepressivo a livraria daquela tristeza solitária. A resposta foi surpreendente:
“Vocês acham que mulher deprimida sai de casa para comprar este vestido lindo que estou usando?”
Além do que, explicou, não se sentia nem estava solitária: descobrira no Facebook várias amigas dos tempos de solteira, viúvas como ela. Reuniam-se a cada dois ou três dias para cozinhar, tomar vinho e dar risada. Às terças e quintas iam ao cinema, aos sábados lotavam uma van que as levava ao teatro.
No carro, a caminho de casa, os filhos estavam desolados:
“Como pode? Essa alegria toda, três meses depois da morte do papai?”
“Deve estar em processo de negação”, acrescentou a nora mais nova.
Nos meses seguintes, voltaram a insistir tantas vezes no tratamento psiquiátrico que ela os proibiu de tocar no assunto, sob pena de não recebê-los mais.
A harmonia familiar desandou de vez num domingo de verão. Sem conseguir falar com a mãe por dois dias, os filhos decidiram procurá-la.
O zelador do prédio avisou que não adiantava subir, dona Ana saíra com a mala na quinta-feira, sem revelar quando voltaria.
Segunda-feira, depois do jantar, os filhos foram vê-la. Com ar consternado, revelaram estar preocupadíssimos com o comportamento materno, achavam que a perda do marido, com quem havia convivido quase meio século, comprometera sua sanidade mental.
Num tom mais calmo do que o dos rapazes, a mãe contou que na volta do enterro abriu uma garrafa de vinho pela primeira vez na vida, sentou-se naquele sofá em que se achavam e pensou em voz alta:
“Vou fazer 70 anos. De hoje em diante, não dou satisfação para mais ninguém.”
*Publicado na Folha de S.Paulo