6:23PARA NÃO ESQUECER

linaguerreiroEm Curitiba – Foto de Lina Faria

Eu conheço esse pé. É meu! É de todos os que com quem convivi, convivo, e também o de quem não conheço. Todos deste mundo onde, numa certa hora, não se aguentou o desconhecido interno, o monstro a devorar vontades, a turvar o belo, a deixar tudo cinza, sem graça. A morte como saída imediata talvez tenha sido a única coisa boa – porque não procurada. Preferimos a lenta, mesmo inconscientemente, aquela onde começamos com o abandono de tudo e nos afundamos na tempestade diária da alucinação alimentada pelo que se pode tomar e entorpecer, para dormir, no leito que é o melhor de todos, porque apagamos e nos encontramos no lugar do antes do nascer e depois de morrer. Até que vem um chute, um sol forte, o barulho do trânsito, alguém tentando nos queimar vivos, o escarro, o descaso, os comentários daqueles que nem sabem porque riem, manada passiva que passa como gado nas ruas das cidades. Eu conheço este pé que acolhe sapatos e tênis usados. Eu conheço todas a lixeiras, todos os restos de comida, a queimação do álcool puro. Eu sei o que é o tuimmm do crack, já enfiei agulha usada na veia para absorver a farinha do desprezo, fumei o mato fedido, cheirei cola, tomei perfume, desodorante e queimei orelhão para aspirar a fumaça intoxicante. Não morri porque, acho, é assim. Tenho um corpo aos pedaços, sujo, fedido, mas às vezes, com meu rosto no piso gelado, penso que me resta uma alma. É com ela que falo, mas corto o barato da tal quando tenta me dizer algo. Sou assim mesmo. Como todos os que sofrem. Por isso nossos pés são muito parecidos. Como o resto dos nossos restos.

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