7:06Respeite as mulheres, sua vaca

por Tati Bernardi

Sim, terei a imensa cara de pau e a gritante falta de noção de falar de mim justo neste caderno tão erudito. Eu posso ver você, 40 e muitos anos, barba, óculos, torcendo o nariz. Que me importa ler sobre essa fulana, justo em um dos últimos refúgios para bons articulistas discorrerem sobre recortes econômicos retirados do epicentro de debates artísticos inseridos em contextos políticos?

Este é um texto sobre perder pessoas. Você, num exemplo “ao vivo”, já nem deve mais estar aqui.

Há algumas semanas, coloquei uma foto no Instagram: uma mulher segurando uma faixa com a frase “Meu útero é laico”. Em cinco minutos, perdi mais de 5.000 seguidores.

Eles se despediram com mensagens bonitas tais quais “assassina de bebês” e “você pode falar porque está viva, os bebês que você quer matar antes mesmo de eles nascerem nunca poderão falar!”. Eu li e pensei “faz parte”, mas meia hora depois senti minha gastrite urrar silenciosa. Ser xingada com palavras tão pesadas, por tantas pessoas, definitivamente, não deveria fazer parte de nada. A internet não pode continuar sendo palco para animais atirarem suas fezes ditatoriais disfarçadas de democracia, opinião e poder.

Como não acredito em solução para isso (mandar prender a wonderfulvia_86?) fiz a única coisa que me cabia e desliguei o celular.

Na terça, querendo ainda participar de alguma forma dos movimentos contra a PL 5.069, escrevi um texto que publiquei no Facebook, onde tenho mais de 1 milhão e meio de seguidores, mais de 500 amigos, mais de 30 pessoas que de fato conheço.

No texto eu dizia algo como: é preciso descriminalizar o aborto, mas também assumir que é um tema difícil, doloroso, triste e que não cabe discuti-lo com a simplicidade de “dar ou não um ‘like'”, como fazemos com a primeira temporada de um seriado. Não se “curte aborto” como se gosta de um filme. É preciso defender, respeitar e dar apoio mas falar também sobre angústias, dúvidas, preconceito, medo e solidão.

Perdi, novamente, pelo menos um terço dos meus leitores. “Tudo bem”, pensei. “Abrir mão do aplauso do mainstream deve significar maturidade profissional. Ainda tenho o apoio dos meus amigos jornalistas e escritores, dos seres pensantes.” Mas calma que piora.

Uma das minhas melhores amigas, militante feminista, se revoltou. Escreveu abertamente em minha página, com o aval de uns 50 “é isso aí!” de amigas em comum, com letras maiúsculas e exclamações rijas, que eu não deveria roubar o foco da campanha “Fora, Cunha” para falar de angústias.

Ela contou, extasiada, que já tinha feito mais de oito abortos. Que tinha carteirinha de desconto. Que tinha milhas. Que tinha cartão fidelidade. Se achando mais mulher e mais livre e mais moderna e mais feminista e mais “gênia do trocadilho” do que qualquer outra.

FALO

Esse é o feminismo agressivo que me incomoda. O feminismo fálico que quer enfiar um pau duro dentro da boca de qualquer mulher que ouse levantar um “mas” ou um “eu acho que”. O feminismo “respeite as mulheres, sua vaca”. O feminismo “se você não entender que estamos falando de mulheres violentadas eu vou te dar um murro” me incomoda a ponto de eu não conseguir ficar calada, mesmo entendendo (e até mesmo concordando com) a opinião de quem defende ser uma excelente hora para, em nome de questões mais urgentes, dar apenas um aval robótico em “hashtags” bem-intencionadas e não querer aprofundar ou problematizar nada.

Mas eu sou mulher, e mulher complica, problematiza, aprofunda, faz DR. E algo está errado com esse feminismo que não quer ouvir as mulheres que não pensam exatamente como ele.

Eu escolho ser feminista de outras maneiras. Eu escolho ser feminista olhando para os furos do meu discurso feminista. Por que o motoboy não pode gritar “gostosa”, mas o vizinho bem-sucedido pode exclamar “gatinha”? Por que a fotinho semipelada em nome de uma militância feminista “100% causa social contra o mulhericídio”, se, ao mesmo tempo, certamente residem lá uns 50% de vaidade ao publicar a imagem? Por que fico mais excitada com mulheres de peitos de fora do que com homens sem camisa, se brigo pra dizer que os seios femininos são iguais aos masculinos (eles merecerem o mesmo respeito e liberdade é diferente de serem a mesma coisa)? Por que só acusamos o machismo fora de nós se passamos uma vida na eterna expectativa de “um cara que aja como homem” seja lá o que isso queira dizer (mesmo as mais descoladas, mesmo as mais feministas, mesmo as que garantem não querer).

Mas vivemos um momento, sobretudo nas patrulhas internéticas, em que só existe um tipo de feminismo correto. O feminismo das verdades absolutas reforçadas por frases realmente incontestáveis como “são milhares de estupros por ano”. Como é que você vai dizer “peraí, nem toda paquera é agressiva” para uma pessoa que argumenta com a derradeira resposta “são milhares de mulheres assassinadas por ano”? Quem consegue falar sobre erotismo se todo e qualquer debate virar IBGE de desgraças? Não só já perdi a discussão antes de começá-la como eu mesma não fiquei do meu lado.

Pobre de quem não estiver sob esse guarda-chuva da precisão terminante que mora em números de palestras. Não existe perguntar “por que” ou colocar um “mas” num discurso qualquer de esquerda sem ser lançado sem dó na vala das pessoas de direita que precisam morrer queimadas em nome de salvar toda uma humanidade. E essa é uma questão política do momento, como um todo.

Blogueira, publicitária, roteirista de comédia, fala de si mesma, eu preferia a outra que escrevia antes dela, trabalha na Globo, quem é essa garota, pra quem ela está dando pra ter essa coluna, volte a falar de pau que era melhor, rodada, sem noção, vaca, anta, coitada, vai morrer sozinha, histérica, mal-comida, assassina de bebês, vendida para a mídia golpista. Todos os dias sou presenteada com algumas dessas pérolas.

Precisamos nos unir para combater essa misoginia sufocante e pegajosa e há séculos arraigada no sangue dos homens e todos os movimentos feministas que têm surgido são necessários e urgentes e precisam muitas vezes soar extremistas para fazer frente à tamanha potência? Sim.

Dito isso, posso informar que 40% das pessoas que me xingam são mulheres? Posso dizer isso sem desmerecer as mulheres e o feminismo e sem receber 34 mensagens “inbox” de amigas militantes dizendo que enlouqueci e que estou desconvidada de suas festinhas?

Quando cedi, há duas semanas, a minha coluna ao Reinaldo Moraes, não foi por não respeitar o movimento feminista que invadiu os jornais e chamou a atenção para o fato real de que homens ainda ganham melhor e têm mais espaço. Foi para dizer que, justamente, se queremos e merecemos igualdade, eu posso brincar de fazer o inverso. Foi para dizer que podemos, inclusive (ocupar o lugar de) oferecer, ao invés de pedir, o que seria um ato ainda mais empoderador. Foi para lembrar que existe o bom homem e a boa paquera.

ASSÉDIO

Vamos falar de assédio? No dia em que saiu a coluna do Reinaldo no lugar da minha, eu estava no hospital com meu pai, aguardando que ele acordasse da sedação de uma endoscopia feita às pressas. Eu não podia desligar meu celular, porque estava esperando o médico dele me ligar.

Foi quando uma dezena de “amigos” começou a me procurar, mandar mensagens, e-mails, escrever comentários no meu Facebook. Todos me acusavam de machista, louca, desinformada, “fez pra aparecer”, “seu discurso é igual ao orgulho hétero”.

Uma mulher falar sobre ser mulher é igual a um machinho ordinário desmerecer os percalços de um gay? Em que planeta dizer “eu concordo com boa parte do que é dito nessas campanhas feministas, mas…” é sinônimo de “eu odeio mulheres e vou combater todas essas merdas que estão sendo ditas”? Por que tentar aprofundar o debate é visto como ser do contra? É visto como tentativa de diminuir o debate?

Tive uma mãe feminista dentro desse universo que considero um tantinho exagerado. Digo “tive” porque a vida a ensinou a ser mais doce (e isso não tem nada a ver com ser mulherzinha). Cresci ouvindo frases como “homem só quer te usar”, “nunca divida ou espere nada de um homem”, “tenha seu apartamento, sua vida, seu filho, e não conte com um homem para nada disso”, “homem é emocionalmente uma raça inferior”, “nunca fique sozinha com nenhum homem, a gente nunca sabe o que eles podem fazer”.

O resultado disso: estou há anos na terapia, tentando confiar em alguém, tentando transar sem pensar que de alguma maneira esse ato me subjuga, tentando não andar pela minha casa como uma sargenta voraz pronta a capar o pênis imundo de quem ousar largar os chinelos na minha passagem. Passei metade da vida expulsando todos os homens que chegaram perto de mim e a outra metade da vida chorando e corroborando os ditos de minha mãe –”e não é que eles foram mesmo embora quando eu os expulsei?”.

O feminismo é para nos igualar (ainda que essa palavra doa, se continuarmos brigando para ser superiores), para nos proteger de milênios de frases e gestos que nos inferiorizam, para tornar gritante as histórias tristes de abusos, mas, ainda assim, não pode se tornar nojo e ódio pelos homens. Ponderar extremos é o mico-leão-dourado da opinião. Por que dizer “o mundo não está dividido entre pessoas acima do bem e do mal e estupradores” me coloca ao lado dos estupradores? Em que momento viramos personagens maniqueístas de novela ruim?

Meu ex-analista me contou que um paciente seu de 17 anos vomita toda vez que bate punheta pra namorada. As feministas da sua classe disseram a ele que “punheta é nojento, é tratar a mulher como objeto, como carne barata”. Um colega escritor premiado e respeitado se desesperou ao saber que, após um texto seu falando sobre admirar uma mulher bonita, sua filha sofreu bullying das coleguinhas, “seu pai é misógino”. Outro amigo, que trabalha em um prédio na Faria Lima, ficou segurando a porta do elevador, esperando uma colega de trabalho. Ela fechou o tempo com ele: “Ah, sim, porque eu não sei chamar o elevador sozinha e preciso MESMO de um homem pra me ajudar, não é?!”. Daqui a pouco “Garota de Ipanema” vai ser proibida de tocar no rádio.

É mesmo um porre andar na rua e ouvir aquela “chupada salivar” ou ser interrompida numa reunião por um olhar que nada profundamente em nosso decote mas dizer “é crime” precisa de asteriscos.

Ninguém mais pode desejar ninguém sem o consentimento em cartório de ambas as partes, sem o documento lavrado em álcool gel, com o perdão do péssimo trocadilho (aprendi com aquela amiga)? O que faremos com o erotismo saudável e positivo (e cada um tem um gosto) que, muitas vezes, sem nenhuma expectativa e violência, nos rouba de uma tarde insípida? Precisamos, desconfio que tanto quanto do sucesso, dos bons homens e de seus afagos e desejos. A boa paquera e o bom macho têm a ver com uma coisa maravilhosa chamada erotismo, chamada atração, chamada sexo, chamada trepadinha no lavabo da festa, chamada amor. Chamada como nascemos e como daremos continuidade à raça humana.

*Publicado no caderno Ilustríssima, da Folha de S.Paulo

*TATI BERNARDI, 36, escritora e roteirista de cinema e televisão, é colunista da Folha.

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