9:22Racismo

por Drauzio Varela

Seres humanos dividem o mundo em “nós” e “eles”.

Criadas por razões religiosas, étnicas, preferências sexuais, futebolísticas ou de outra natureza, as tensões e suspeições intergrupais são as grandes responsáveis pela violência no mundo.

O preconceito que resulta dessas divisões não é consciente, está arraigado nas profundezas do passado evolutivo, na tendência universal de formarmos coalizões que nos ajudem a enfrentar os desafios que a vida impõe.

Experimentos conduzidos nos últimos 30 anos mostram que nos reunimos em grupos, mesmo em torno de objetivos fúteis: o fã-clube de uma cantora, um time ou um piloto de corrida. E que, ao nos incluirmos em tais agrupamentos, passamos a acreditar que nossos companheiros são mais inteligentes, espertos, generosos e dotados de valores morais superiores aos dos membros de outros grupos.

As pesquisas hoje estão dirigidas para as razões que nos levam a enxergar o mundo sob essa perspectiva do “nós” e “eles”. Que fatores em nosso passado evolutivo forjaram a extrema facilidade com que formamos coalizões e reagimos de forma preconceituosa contra os estranhos a elas?

Para muitos psicólogos, o ódio dirigido a “eles” tem origem na generosidade manifestada em relação a “nós” mesmos. Seres humanos são os únicos animais capazes de cooperar tão intensamente com pessoas que não fazem parte de seu clã.

Essa característica se deve ao fato de que a adaptação à vida grupal foi decisiva à sobrevivência da espécie. Isolados, não escaparíamos dos predadores ao descer das árvores nas savanas da África, há cinco ou seis milhões de anos.

Como consequência, esperamos encontrar acolhimento e solidariedade quando estamos entre “nós”, porque somos mais amigáveis, altruístas e pacíficos do que os de fora. Valores morais dessa magnitude nos autorizam a agir com violência contra inimigos que julgamos não possui-los, em caso de disputas por territórios, prestígio social, empregos ou acesso a bens materiais.

Nossos parentes mais próximos têm uma visão maniqueísta do mundo semelhante à nossa. Chimpanzés se juntam em bandos que atacam e matam membros de outras comunidades. Agressões por disputas intergrupais são descritas também em gorilas, bonobos e orangotangos, grandes primatas como nós.

O grupo de Laurie Santos, da Universidade Yale, estudou macacos rhesus, primatas que divergiram dos ancestrais que deram origem aos humanos 25 a 30 milhões de anos atrás. Colocados diante de fotografias, eles passavam muito mais tempo encarando as fotos dos macacos de outras comunidades.

A conclusão é de que nossas reações diante de estranhos fazem parte de um mecanismo neural de detecção de ameaças, que nos permite distinguir rapidamente amigos de inimigos.

Milhões de anos de seleção natural engendraram um sistema de segurança que erra menos ao disparar alarmes falsos do que se deixasse passar despercebida uma ameaça real. Nem todos, porém, reagem às sensações subjetivas de perigo da mesma maneira. Aqueles que apresentam reações exacerbadas e desproporcionais são justamente os mais sujeitos a exibir comportamento preconceituoso.

O preconceito contra “eles” se manifesta de forma mais clara contra os homens (hipótese do homem guerreiro). À luz da evolução, foram eles que fizeram as guerras e atacaram nossos ancestrais.

Talvez por essa razão, homens negros sofram mais preconceito do que as mulheres da mesma cor, sejam tratados com mais violência pela polícia, recebam condenações mais longas, paguem alugueis mais altos e sejam ofendidos nos estádios de futebol.

Temos ímpetos inatos para levantar fronteiras intergrupais que separam raças, línguas, comportamentos sexuais, religiões ou times de futebol. Uma vez que a linha fronteiriça esteja demarcada, discriminamos automaticamente os que estão do lado de lá.

Embora o preconceito esteja alojado em áreas arcaicas do sistema nervoso central, sua expressão não é inevitável. Nosso córtex cerebral já evoluiu o suficiente para reprimi-lo, de modo a abandonarmos a bestialidade do passado e adotarmos condutas racionais centradas na tolerância e na aceitação da diversidade humana.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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