de Fernando Muniz
A Coalizão e seus bombardeiros de longo alcance fustiga as tropas de Sassafrás. Mas os cidadãos de bem, notadamente porcos, tão comprometidos com as engrenagens da máquina pública, não perdem a fé em seu Líder e suas máximas, crentes na vitória certa.
Em uma estalagem, a meio caminho entre a Capital e a frente de combate, viajantes tomam cerveja, à espera da liberação das estradas, interditadas por tanques e tropas em movimento.
Um porco Landrace, imenso, de 350 quilos e orelhas caídas para frente, não cansa de afirmar aos colegas de bar, imensos como ele, que não há o que temer. “Vocês vão ver, a guerra ainda não acabou. Não mesmo. Esperem que, até o outono, as coisas vão mudar. Novas armas, produzidas em laboratórios secretos da Nação, com certeza vão tornar a guerra em nosso favor”. Isso apesar de soldados caírem aos milhares a cada dia, entrincheirados em linhas de frente que pouco mudam entra mês e sai mês. Mas são humanos; nada que, por enquanto, mereça atenção das classes dirigentes.
“Os ventos vão virar em nosso favor”? O estalajadeiro perde qualquer freio e fala o que vem à mente. “Vocês não percebem o que está acontecendo? Nossos soldados têm sido esmagados feito pulgas em uma guerra que não diz respeito a ninguém, só a uma corte que não tem o mínimo respeito ou consideração por nós. Meus filhos foram convocados; daqui a pouco serão os de vocês”!
O Landrace perde a compostura. “Blasfêmia! Você poderia ser preso por falar assim”!
Outro humano, sentado no fundo do bar, que ainda se recorda do tempo em que porcos viviam em chiqueiros, sai em defesa do estalajadeiro. Arma a espingarda, coloca no ombro e se aproxima da mesa. “Ora essa, que besteira. E desde quando alguém vai ser preso por dizer a verdade”?!
O Landrace se impressiona com a ingenuidade do caçador e dá uma gargalhada, no que é seguido por seus companheiros Gascões, Durocs e Corsos, que começam a se incomodar com a insolência daqueles humanos miúdos, de não mais que 80 quilos. “Quê?! Mas falar a verdade é a primeira causa de prisão hoje em dia”. O Landrace tenta se levantar, mas não consegue ficar em pé – costume recente com o qual ainda não se acostumara. E continua. “Uma arma nova, sim, em breve vai ser usada contra os inimigos. Sei disso de fonte segura, que trabalha no Palácio”. Toma a cerveja do seu copo em um gole só – outro hábito novo, todavia, mais fácil de se acostumar. “Ainda me lembro do meu avô, dizendo que porcos tomarem cerveja era sinal de que seriam jantar de humanos; mas vejam só, como vivemos hoje; estamos em um novo tempo! Graças a Sassafrás”. Coça a barriga, que despenca de dentro da calça que insiste em não lhe cair bem, vira os olhos para os companheiros e, com desdém, para os humanos. “Tempo de Sassafrás”! Levanta um brinde ao Líder; mas ninguém o acompanha.
Faz-se silêncio; humanos e porcos escutam o rugir dos canhões, ao fundo. Cada um olha o seu copo, com os pensamentos longe dali. Embora ainda seja cedo, por certo não há mais o que ser dito e o que importa, agora, é as estradas reabrirem; rumo a qualquer outro lugar que não ali.
O estalajadeiro não tem tempo para conversa fiada e nem quer novas discussões; recolhe os copos vazios, cobra as contas e decreta que vai se recolher. Rude, coloca as cadeiras sobre as mesas. Os porcos, de tão bêbados, não percebem o que está acontecendo e saem, uns abraçados aos outros. O caçador pega seu boné, espingarda e sai noite afora; o tempo daqueles porcos arrogantes vai chegar, com certeza vai.
Hora de escutar o rádio e os boletins da guerra; de emissoras estrangeiras.
Hora da verdade.