6:33Vacine o preconceito

por Thea Tavares

Quem ainda não ouviu uma opinião de alguém, alterado e cheio das razões, sobre a ordem que a pessoa considera ser a mais correta para o andamento da fila de vacinação? Sabe aquela máxima que diz que todo brasileiro se acha meio técnico de futebol? Ela vale também para a escalação dos grupos de risco na fila da vacina: todo mundo tem uma ideia de como deveria funcionar e a quem priorizar no esquema tático.

Fico me perguntando de onde surgem tais “convicções” – entre aspas, desde que o termo se tornou pejorativo e emblemático deste contexto – e não encontro resposta satisfatória ou a contento, no sentido restrito mesmo da ausência das respectivas satisfação ou contentamento que essa resposta traga. A julgar pela repetição de algumas afirmações, em curto período de tempo, é possível perceber ainda uma certa orquestração de “condenações” dessa natureza. Sim, pois em geral são opiniões carregadas de mensagens desabonadoras e com vigorosa veia de exclusão.

Tenho ouvido com frequência o julgamento de que os critérios e a definição dos tais grupos de risco estariam errados, baseado numa cizânia entre os idosos e os “trabalhadores”, referindo-se às camadas na ativa mais pressionadas e que não têm como não sair de casa, se amontoar no transporte coletivo e bater ponto todos os dias no seu (privilegiado) local de trabalho para garantir a sobrevivência. Isso muito incomoda e irrita profundamente.

“Porque o idoso pode ficar mais tempo em casa”; “Quem sai, vai voltar e transmitir pra ele”;  “E quem cuida do idoso, não vai pegar também?”… Você começa a absorver a energia de uma fila de banco na hora do almoço, quando destina toda a sua raiva para a emissão de senhas de atendimento preferencial. É daí pra pior ou mais rasteiro: “o preso pode e eu não!”. A preguiça bate pesado, mas logo me vem o pensamento de que foi também deixando passar, não dando ouvidos a ideias assim, sem contra-argumentar e sem acreditar que frutificassem algo mais danoso, que chegamos à atual composição do comando da Nação.

Respira fundo!  “Então, você sabe que os conhecimentos para orientar a gente sobre o combate a essa doença estão sendo produzidos ao mesmo tempo em que vamos sobrevivendo, tratando e percebendo como ela se desenvolve e como a sociedade reage, não é verdade?”. É claro que a gente já perde a atenção do interlocutor nessa preleção, nesse “nariz-de-cera”. Respira fundo, parte dois: “Quando a OMS definiu os princípios da orientação aos países, ela se baseou no que há de mais elementar a respeito do enfrentamento à Covid-19, cara pálida: salvar vidas!”. Dito isto, estamos trabalhando (ou deveríamos!) na perspectiva de conter a contaminação e de evitar mortes. O que significa dizer ainda que se o idoso contrair, por ser naturalmente um grupo com organismo de imunidade mais baixa, ele tem mais chances de morrer… Que o preso está privado (sob a tutela do estado) inclusive da liberdade de fazer “isolamento” e que a propagação da doença naquele ambiente seria demasiadamente desastrosa… E por aí vai! Isso que poderia ainda mencionar que estados e municípios vão adequando suas prioridades e administrando pressões e realidades próprias nas definições de critérios e ordenamentos.

Mas longe de uma dilacerante “escolha de Sofia”, o que prevalece nesses sentenciamentos umbilicais leigos e obscurantistas, sob efeito da forte comoção do momento, são o ódio e o preconceito. Nisso, as pessoas se esquecem ou preferem não perceber valores mais essenciais da nossa humanidade e embarcam também na polarização estúpida entre a saúde e a economia, que tantos outros males causa em todos os aspectos. São da natureza das mesmas opiniões e pânicos derivados de filosofia de programa policial vespertino na TV, que nos legou a disseminação eficiente da máxima de que “bandido bom é bandido morto”, sabe-se lá sob a orientação de qual conceito de “bandidagem”.

Ao esquecerem-se de focar no fato de que esse “arranca-rabo” todo e disputa de cobertor só acontecem pelo simples fato de que não há garantia de vacina para todos (ponto!), abandona-se também o prumo da devida responsabilização. E isso enquanto a velocidade do andamento da fila de vacinação, combinada a outros fatores sociais e comportamentais, faz a gente perder a corrida para as novas variantes do vírus, que as vacinas atuais, pesquisadas ao longo desse tempo de pânicos e de reações, possam daqui a pouco não mais dar conta de imunizar.

Talvez, se fizessem esse exercício de raciocínio, as pessoas se empenhariam em focar a atenção nas responsabilizações quanto a essa falta de vacinas, mais perto estaríamos de resolver o problema e de encontrar soluções no sentido de diminuir o sofrimento da nossa gente e de atravessar esse período, senão com os menores danos possíveis, mas sem agravar e tornar o quadro ainda mais caótico e insustentável.

Aqueles que se ligam nisso e corajosa ou indignadamente saem de suas casas para protestar nas ruas (devidamente paramentados, claro!), tornam-se alvos preferenciais também de toda sorte de opiniões acusatórias, que variam de tom conforme e a depender de quem estiver no alvo dos tais protestos. E a gente assiste a tudo, torcendo para que entre todas as leis e teorias científicas em jogo, o bom senso faça prevalecer aquela que aponte caminhos de transformação desta triste realidade, que nos faça desapegar do comodismo e da resignação embutidos na vigente Lei de Murphy.

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