por Demétrio Magnoli
Marcos redondos têm valor simbólico, mas pouco significam na análise estatística
Marcos numéricos redondos têm valor simbólico, mas pouco significam para a análise estatística. Dias atrás, mundo afora, as manchetes destacaram a (falsa) ultrapassagem da fronteira do milhão de mortos por Covid-19. Certamente o limite foi rompido antes, mas não enxergamos a placa graças à subnotificação generalizada. De qualquer forma, é um sinal da escala da pandemia —e, ainda, um alerta sobre a arrogância humana.
Um milhão é muito ou pouco? Não vale comparar a pandemia com fenômenos cujas causas, temporalidades e espacialidades são distintas, como guerras, atentados terroristas, mortes no trânsito ou tsunamis. Pandemias devem ser cotejadas com pandemias; doenças com doenças.
A tuberculose mata, anualmente, cerca de 1,5 milhão; a diarreia infecciosa, 1,4 milhão; a Aids, 950 mil; a malária, 620 mil; as gripes comuns, 650 mil. A OMS estima até mais um milhão de óbitos pelo coronavírus antes da vacinação em massa —e isso com o cortejo de restrições sanitárias aplicadas pelos governos. É muito.
Ninguém sabe ao certo quantos morreram na gripe espanhola de 1918. As estimativas variam de 18 milhões a 50 milhões. A mortalidade giraria, portanto, entre 1% e 2,7% da população mundial de 1,8 bilhão. Naquele ano, pela última vez na história, registrou-se crescimento demográfico global negativo. A Covid, em contraste, ceifará menos que 0,03% da população do planeta e será praticamente indetectável nos gráficos da dinâmica demográfica. É pouco.
Muito ou pouco, depende do ponto de vista. O número assombra os arautos da “gripezinha”. Osmar Terra, guru especialista de Bolsonaro, profetizou um máximo de 2.000 mortes no Brasil, num ciclo epidêmico limitado a 13 semanas. Qual seria o saldo de óbitos pelo vírus se, como queria o presidente, tivéssemos escolhido prosseguir a “vida normal”?
Na ponta oposta, o milhão global de mortos desmente os profetas que, inspirados pelo Imperial College, imaginaram algo como uma reedição da gripe espanhola. Atila Iamarino projetou “um milhão de pessoas mortas” —mas apenas no Brasil e somente até o final de agosto. Isso, no “cenário de mitigação que a gente está fazendo”, ou seja, fechando “escola, transporte, trabalho”. Qual seria nosso saldo de miséria, desemprego, desespero e violência social se, como queria o fundamentalismo epidemiológico, tivéssemos optado pela via do “lockdown” eterno?
O erro é parte da experiência humana: ninguém deve ser estigmatizado por equívocos de boa-fé. Mas as profecias hiperbólicas simétricas evidenciaram complexos intercâmbios entre o discurso científico e as narrativas políticas.
Os 2.000 de Terra ajudaram a extrema-direita a conferir um simulacro de legitimidade científica ao negacionismo criminoso de Bolsonaro. O milhão de Iamarino contribuiu com o esforço da esquerda de reivindicar o impossível para, na sequência, acusar todos os governantes adversários de negligência criminosa. A polarização política fecha caminhos à difícil busca do equilíbrio entre as demandas contraditórias da saúde, da economia e das liberdades públicas.
Até aí, porém, singramos na superfície. Atrás das profecias minimalistas oculta-se a arrogância diante da natureza: o vírus pode ser ignorado, pois a economia é tudo. Já as profecias maximalistas expressam a arrogância diante da sociedade: a vida social, o emprego, os direitos individuais podem ser cancelados indefinidamente, pois o vírus é tudo. Numa ponta, despreza-se a perspectiva aterradora de pessoas morrendo sem atendimento às portas de hospitais superlotados. Na outra, a paisagem perversa da militarização das cidades, de suas periferias e favelas, decorrente da estratégia utópica de supressão completa dos contágios.
Um milhão é muito ou pouco? Sei lá. No meu mundo ideal, seria um chamado à humildade, à dúvida e ao diálogo.
*Publicado na Folha de S.Paulo