6:37Carta a um não confinado

por Demétrio Magnoli

Consertamos a economia depois, todos juntos, sem individualismo

Não ponho o pé na rua há semanas. Leio, aproveito meu pacote da Netflix, experimento receitas, até comecei a pintar. Exercito-me na esteira da sala. Peço tudo por aplicativo. Faço sacrifícios: sinto falta do Iguatemi, dos meus restaurantes preferidos, de viajar.

Você, não confinado, sabota meus sacrifícios, espalhando o vírus. Devo qualificá-lo como um ser antissocial.

Não há vacina ou remédio confiável. O governo Bolsonaro ignora a pandemia, fechou o Ministério da Saúde, não coordena esforços de testagem. São mais motivos para ficar em casa, nossa única salvação.

O renomado cientista Miguel Nicolelis disse que a quarentena é para “evitar contágios”. Itália e Espanha estão flexibilizando a medida com, respectivamente, 1.552 e 2.397 contágios médios diários na última semana. Seus governos irresponsáveis deram as costas à ciência. Você nunca a seguiu.

Leio na Folha as palavras sábias do sanitarista Claudio Henriques, que adiciona prazos à meta expressa por Nicolelis. A quarentena deve perdurar por “mais de um ano” e precisará ser reforçada por períodos de “lockdown” com “cerca de duas semanas cada”. Ok: home office direto, via Zoom. Perdi um naco de renda; meus gastos, porém, também diminuíram. Mas essa extensão de meus sacrifícios só terá sentido se você ficar em casa, como eu. Hora de chamar a polícia, Doria!

Os restaurantes, graças aos céus, ainda não podem abrir na Itália. Seus proprietários iniciaram um movimento coletivo de entrega das chaves aos prefeitos. Mercenários: pressionam pelo desconfinamento em nome do vil metal. Vocês, donos de lojinhas e serviços não essenciais que furam a quarentena no Belém, no Brás, no Pari, são ainda piores que eles. Chega, né, Covas? Tem que trancar tudo, com multas exemplares.

Guedes boicota a rede emergencial de proteção social, atrasando o pagamento dos vouchers para os pobres. São meros R$ 600. Ok, acho pouco. Mas nada disso desculpa as cenas das favelas que retomam a normalidade. A vida é o bem maior. Você, informal desconfinado, revela sua ignorância ao desrespeitar a norma sanitária ditada pela ciência. Todos estamos no mesmo barco: dê sua cota de sacrifício, como dou a minha.

Quarentena tem, afinal, coisas boas. O planeta descansa, a natureza respira, a humanidade usa o tempo livre para reaprender a solidariedade. Louvo os corajosos médicos que estão na linha de frente. Postei homenagem no meu Insta, que ganha seguidores.

Vejo imagens de crianças descalças jogando bola na rua de uma favela, não sei se na zona oeste ou na leste. Serão filhos de auxiliares de enfermagem? Pouco importa: um sacrifício não justifica uma negligência. As escolas fecharam para evitar o tráfego do vírus pela ponte dos assintomáticos. Meu filho brinca no playground do prédio, quando desliga o celular. De quantas mortes você precisa para segurar as crianças em casa?

Sigo, atento, as estatísticas da Covid-19. A curva sobe, sinistra. Leio projeções sombrias de queda do PIB. Cinco milhões perderam empregos ou tiveram cortes salariais. Há, nesses milhões, gente como você, que se desconfina –e diz ao Datafolha que a quarentena deve terminar. Por falta de escola, você não aprendeu a ordem das coisas: a distinção entre gráficos relevantes e insignificantes. Economia, consertamos depois. Daqui a um ano pensamos nisso. Todos juntos, sem individualismo.

O Ocidente fracassou —e nem falo dos EUA. A Alemanha reabriu todo o comércio num dia com 282 óbitos, mais de mil contágios. É deboche da ciência. A China, sim, funciona. Lei marcial. Queria ver você lá, em Wuhan, onde dão valor à vida. O isolamento em São Paulo caiu a 47%. Covas, fracote, desistiu de bloquear avenidas. Mas disse certo: “As pessoas não entenderam a mensagem”.

Basta. “Lockdown” já! Com esse zé povinho não dá. Odeio você.

Assino: um cidadão informado. Volto às séries.

*Publicado na Folha de S.Paulo

3 ideias sobre “Carta a um não confinado

  1. Tomas Roi

    Carta de um nutella alienado, que não depende de emprego e salário para viver. Seu sacrifício não consiste em deixar os filhos sem feijão e arroz, para ele, fútil e egoísta, o problema é não ir ao shopping, deixar de experimentar os prazeres gastronômicos e não viajar. Ó ceus, será que ele sobreviverá a essas severas privações? Creio que enquanto o sinal da netflix estiver disponível e o delivery entregar os potes de nutella, a vida dele, inexpressiva para a sociedade, estará assegurada!

  2. Meno

    Ainda tem gente como o presidente que não acredita que existe o COVID19. Os canalhas um dia pode regenerar, porém, os burros e alienados permanecerão ,FHC.
    Dizem os otimistas que tudo estará normalizado dentro de um ano. Digo que nada será como antes,
    mesmo estando todo rebanho humano vacinado, imunizado. Os comportamentos devem primar pela segurança coletiva. As cidades refazer seus planos diretores e reconhecer que o urbanismo não deve centrar em bairros privilegiados. Inúmeras vezes fomos ao IPPUC DE CURITIBA, solicitar abertura de ruas, democratizar políticas públicas em áreas adensadas e isoladas. Respostas: não tem recursos e num passe de mágica 200 milhões de reais, despejado nos cofres das empresas do transportes coletivo. O Brasil é esta zorra pela incongruência, e dirigentes incapazes de enxergar o óbvio. Ciência é o único caminho para manter a espécie humana salva.

  3. SERGIO SILVESTRE

    Está provado que o vírus gosta de muvuca,shoopings ,e multidões em shows,cultos e estadios,Londrina tem 110 infectados,é uma cidade média,com pouca muvuca e hoje apesar doa 600 mil ha e quase 1.5 milhão na area metropolitana tem 2 com o virus internado em UTI onde temos mais de 100 disponíveis,mas a pressão aumenta e se o prefeito abrir todas muvucas,as UTIS não daram conta.

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