por Célio Heitor Guimarães
No meu tempo de criança, lá no interior, Sexta-Feira Santa era santa mesmo. O comércio não abria as portas, as repartições públicas e as escolas não funcionavam, as emissoras de rádio (a TV não existia) silenciavam, não havia sessão de cinema (a não ser para passar “A Paixão de Cristo”, com a plateia lotada, ainda que todo mundo já soubesse como o filme terminava). Quem não ia à igreja, procurava ficar em casa, silente. Até dar risada era proibido. Havia profundo respeito à data. E o respeito – pasmem! – era sincero.
Um homem fora pregado na cruz. E o sofrimento dele ainda doía nas pessoas quase 2.000 anos depois. Era um homem grande, 1,81m de altura, uma enormidade para a época. Pôncio Pilatos, procurador de Roma em Jerusalém, acostumado a lidar com bandidos, ladrões e traidores, não via culpa naquele gigante. Ao contrário, ele lhe inspirava respeito… e medo. Seu crime fora peregrinar pelos campos, pelas cidades, pelas montanhas e pelo deserto pregando a verdade. Viera a este mundo para atestar a verdade, já que o seu reino não era daqui. Pilatos pensou em libertá-lo, como era costume libertar um preso na Páscoa. Mas a patuleia, aos gritos, preferiu libertar o ladrão Barrabás e exigiu a crucificação de Jesus.
Antes disso, ele foi açoitado com cem chicotadas de correias de couro, em cujas pontas pendiam pares de bolas de chumbo. Os açoites atingiram dorso, peito, pernas, ventre, nádegas e testículos. Preservou-se apenas a área do coração, por motivos óbvios. Em seguida, colocou-se sobre a cabeça do açoitado um elmo de espinhos em forma de gancho e sobre seus ombros e nuca uma viga de cerca de 60 quilos e quase 1,70m de extensão, o chamado patibulum, com os quais foi obrigado a caminhar até o lugar da execução.
No monte Gólgota, cerca de 300 metros de Jerusalém, o carrasco colocou Jesus sobre o patibulum e martelou o primeiro prego, de cerca de 12 cm, na parte interna do punho esquerdo. O segundo prego, destinado ao punho direito, surpreendemente, parou no meio do caminho. Nem um segundo golpe foi capaz de fazê-lo penetrar um nó rugoso da madeira. Contrariado e com o brio atingido, o carrasco foi obrigado a recorrer a um alicate, em meio à hemorragia que tomava conta do condenado, para extrair o prego e recolocá-lo um pouco mais adiante.
Então, o patibulum foi fixado sobre o pontalete que já se encontrava fixado no solo. E chegou o momento de fixar os pés do homem de Nazaré. Como de costume, o pé esquerdo foi postado sobre o pé direito e um prego afixado sobre os dois.
Nenhum protesto e nenhuma blasfêmia se ouviu da boca de Jesus, coberto de sangue e de dor, contra os seus algozes. Apenas uma breve e sofrida súplica:
– Pai, perdoai-os, porque não sabem o que fazem!
Mas o tempo passa, o tempo voa e, hoje em dia, muito poucos dão importância àquele episódio ocorrido na Palestina. A Sexta-Feira Santa é um dia comum. Os colégios, os bancos e as repartições públicas fecham, mas por outros motivos, como, por exemplo, para as pessoas irem à praia. Os shoppings, os mercados e os bordéis funcionam normalmente. Alguém ainda há de ir às igrejas, mas certamente o capítulo da novela das nove ninguém perderá.
Tive educação católica por tradição. Fui batizado, fiz primeira comunhão e casei na igreja católica, meu filho idem. Mas não sou um homem religioso e não costumo frequentar cultos e rituais, a não ser em ocasiões especiais. Porque não acredito nos dogmas das igrejas e eles não me convencem. Talvez eu siga a lição do meu querido Rubem Alves, segundo a qual “é preciso não ter religião para amar a Deus sem medo, com alegria e, principalmente, sem nada pedir”. Como Rubem, acho que Deus não está nas religiões nem nas igrejas. É um Grande Mistério. Que está além das palavras e do entendimento. E diante do qual a gente emudece.
Mas acredito em Jesus, o Cristo, pessoa física que um dia viveu entre nós e aqui foi crucificado e morto. E não tenho vergonha de reconhecer isso. Não tivesse ele existido, sua palavra não teria sobrevivido durante tanto tempo. Cadê o poderoso Império Romano? Ou o exército de Alexandre, o Grande? Ou o de Napoleão? Ou o de Hitler? Ou o império soviético? E até mesmo o império de Tio Sam, em franca decadência?
A lamentar apenas – e profundamente – o mau uso que tem sido feito do nome de Jesus, particularmente em busca de riqueza e de poder.
Não foi para isso que ele esteve aqui. Nem foi essa a mensagem que deixou.
Pela primeira vez concordo com a matéria.
Belíssima e oportuna crônica, Célio. Estamos dela precisados. Cristãos ou não. É preciso ir à fonte, ali flui água da vida. Chega de discursos e fanfarras sem sentido.