Marinho e a bola que ele sempre comeu
Agradeci ao filósofo Neném Prancha e tasquei lá no papel que meu personagem ia na bola como quem vai num prato de comida. Isso foi no tempo da máquina de escrever, do telex, da revista em cujas páginas eu só via a reportagem na semana seguinte, sem me dar conta de que era o único veículo, como chamam, a divulgar para o Brasil todo o que acontecia de interessante nos times e campos daqui.
Aquele jogador tinha mais que essa determinação do prato de comida. Ele jogava muito ali no meio-campo, onde fazia o papel de marcador, trabalhador incansável, tratador da bola com o carinho que ela sempre merece, lançador, conhecedor de atalhos, abridor de espaços. A comida, lembro, tinha a ver porque ele nasceu pobre de tudo.
No domingo que passou eu o encontrei na mesma região onde ele foi criado, ali pelos lados do Umbará, numa casinha à beira do rio de águas pretas. Casa que a gente entra pela cozinha e nota que não há portas lá dentro, mas cortinas separando cômodos. Num deles está meu ídolo, quase cego, com dificuldade para se levantar da cama e andar.
O rosto é o mesmo, vincado, o cabelo não tem mais aquela armação dos tempos em que era reverenciado, mas ele mantém um certo charme, com o boné, óculos escuros, o agasalho e o tênis que ganhou de uma alma caridosa que nunca esqueceu, como eu, do que ele proporcionou quando vestiu aqui as camisas do Colorado, Pinheiros e Matsubara.
Na sua mente não há registro da voz do interlocutor, mas lembra da revista e das matérias. Então sorri. Há poucos dentes em sua boca. Ele não mudou o tom de voz, não há apelo em suas palavras, ele vive o que tem de viver, com filhos criados, netas que o adoram (uma das filhas aparece, a mais nova, para lhe dar de presente uma toalha de banho e um perfume, entregues pela neta que ele ajuda a criar).
A comida que entra naquela casa, na casa do grande jogador que foi, vem da colaboração de amigos, ex-jogadores como Chiquito, Mauro Madureira, Dionísio. O aluguel de R$ 600,00 só Deus sabe como pagam. No domingo, a mulher, Rose, que o acompanha há 30 anos e que ele chama de “KGB”, pois ia buscá-lo nos bares depois dos jogos, disse que tinham apenas R$ 200,00. O grande jogador não tem aposentadoria. Recebe R$ 700,00 de auxílio-doença.
Ele ouve e não fala nada. Nunca foi de reclamar. Ao contrário. Ganhou dinheiro, sim, pouco em relação ao que ganha qualquer cabeça-de-bagre de hoje em dia, mas parecia bolo de padaria exposto às moscas, pois chovia gente pedindo dinheiro “emprestado” – de familiares a amigos. E ele nunca negou, segundo a companheira.
Nunca se arrependeu do que fez. Só lamenta que um dia, antes mesmo de despontar no futebol paranaense, quando servia no quartel ali perto de onde mora, o da Artilharia do Boqueirão, depois de participar de um campeonato de seleções de juniores dos estados, foi procurado por Zito, aquele mesmo, meia bicampeão mundial, integrante do time do Santos considerado o melhor de todos os tempos na história do futebol mundial. Pois Zito queria levá-lo para a Vila Belmiro. Ele tinha 18 anos e ao receber as passagens entrou num dilema. A mãe não queria que o guri fosse para longe. Ele recorda que ia e voltava até o portão, sem saber o que fazer. Até que decidiu numa explosão: rasgou a passagem e voltou para o quartel para a ordem unida diária, ele que tinha sido dispensado pelo coronel comandante.
Dois dias antes da minha visita o amigo Chiquito deu o alerta pela rádio CBN, dizendo que o ex-jogador estava precisando muito de ajuda. Eu sabia há tempos que ele não estava bem, mas deixei o tempo passar até ouvir o apelo. Imaginava uma situação muito pior, pois tinha ouvido conversa de que ele estava muito depressivo e trancado num quartinho nos fundos da casa. Não foi isso que encontrei, mas a situação é preocupante, mesmo porque ele precisa de tratamento médico por problemas nos rins e até para visitar um oftalmologista para estudar a possibilidade de alguma cirurgia, já que tinha feito anos atrás transplante de córnea.
Há alguns dias, Dionísio Filho, o Djonga, lateral que formou naquele time do Pinheiros que ganhou títulos e mais títulos antes da fusão com o Colorado para formar o Paraná Clube, esteve lá. E não aguentou. Chorou ao ver seu ídolo ali naquela casa, naquele estado.
Não, não chorei porque, como disse, imaginei que ia encontrá-lo numa situação pior, daquele jeito que estou acostumado a ver nas vítimas do alcoolismo, que nada mais é do que sintoma da doença da alma, essa mesmo que deve ter levado o ator Robin Willians. Preferi ouvir meu ídolo contar como era jogar naquele Guarani de Neneca, Zé Carlos, Zenon, Renato, Capitão, Careca e Bozó, campeão brasileiro de 1978, aonde chegou no ano seguinte, a convite de Carlos Alberto Silva, para disputar a Taça Libertadores.
Para quem começou jogando no Britânia, parou, foi trabalhar no Bamerindus, e voltou ao futebol no Colorado pelas mãos do técnico Geraldino, atuar em times da Suburbana como o Santa Quitéria e Vila Hauer, depois que parou de vez não foi tão difícil. Mesmo porque precisava para ganhar uns trocados e ir segurando a barra em casa. Depois veio a depressão, aliviada com alguns goles e aumentada com a perda da visão, que resultou num transplante de córnea que não resolveu o problema.
O baixinho que sempre foi gigante em campo já lamentou não ter vivido a época atual do futebol brasileiro, de quebradores de bola, mas de ouro para quem joga um pouco acima da média. E ele sabe: seu futebol estava bem acima deste patamar. Diz que, na Europa, em cinco anos teria feito o pé de meia até para as futuras gerações de sua família.
A realidade, contudo, é esta onde estou dentro, por algum tempo, com ele vendo um vulto e sentado num sofá bastante usado. Na conversa, penso que esse tipo de encontro alimenta sua alma, porque ele tem ótimas recordações do tempo em que era maestro e exemplo de garra dentro de campo. A mulher dele então o chama para o almoço. O prato de comida de sempre. Aproveito para me despedir e agradecer por tudo que ele mostrou nas dezenas de partida em que o vi jogar – pelo Colorado, Pinheiros e Matsubara – e por ter me proporcionado o prazer de entrevistá-lo mais de uma vez para a revista, quando até posou dançando discoteque, porque adorava bailar também fora dos gramados.
Mario da Rocha, o Marinho, agradece meio encabulado, como sempre foi. Acho que ganhei e dei um presente neste Dia dos Pais.
*Para quem quiser ajudar o Marinho, o telefone do Chiquito é 9972-1931.
*Publicado no site A Gralha (www.agralha.com.br)
Parabéns pela publicação. Coisas boas para relembrar e reflexão. Os blogs de hoje, em sua grande maioria só trazem notícias de políticos, muitas mentiras e poucas verdades, cada um puxando pro seu candidato, embora discretamente mas muito perceptível.
Zé, somos tão egoístas que fingimos que não vemos, que vivemos em outro mundo.
belo texto. parabens!
nosso país é assim. só sabemos receber. quando o artista sai do palco, acabou. se ele se atrapalha, pior ainda. graças ao chiquito, que me cantou a pedra, foi muito bom ir atrás do meu chapa marinho. agradeci por tudo que ele me proporcionou quando jogava. registrei lá na revista. agora sei onde ele está, posso ir lá conversar, rir como rimos no domingo, ouvir histórias e ajudar no que me é possível. amém.