Ilustração deTheo Szczepanski
por Rogério Pereira
Comprei uma mesa — uma mesa e seis cadeiras. É a primeira vez que compro uma mesa. Paguei em seis parcelas. Uma parcela para cada cadeira. A Riachuelo tem móveis, roupas e putas. Quando embiquei pela estreita rua, vindo da praça Generoso Marques, três prostitutas e um rufião (imagino que fosse) conversavam com certo desânimo na esquina envoltos pelo ridículo calor de Curitiba. As três vestiam saia curta e blusas decotadas. Nos pés, sandálias plásticas. Os peitos flácidos esmagados contra o coração e os ossos da costela. Todas de seios enormes, meio caídos — anjos de asa quebrada. Sem silicone. Antiquadas, as putas da rua Riachuelo não usam silicone. São do tempo em que se conquistava cliente a muque, no suor da língua.
Havia tempos não encontrava as putas da Riachuelo. Sempre que as vejo, lembro-me da minha mãe. Não, ela não é puta. Pelo menos que eu saiba. Hoje, seria impossível. O câncer transformou seus seios em duas vergamotas murchas. A bunda desapareceu, ganhou o contorno de uma reta. O câncer na garganta da mãe suga todo o resto do corpo para um lugar desconhecido. Onde o câncer cospe os pedaços que mastiga do corpo da mãe?
Mas as putas da Riachuelo lembram minha mãe. Quando criança, ela me arrastava pela rua em busca de roupas baratas e resistentes. Pobre não liga pra roupa bonita. Pobre gosta é de durabilidade. Os turcos — todos libaneses — seguem ali com suas lojinhas, sentados à espera de uma clientela que não os abandona. As putas também. Eu tinha nove anos. Era 1982. Tenho certeza. Tudo em minha vida aconteceu (e continua acontecendo) em 1982 — o ano em que Paolo Rossi destruiu a minha vida e a do Telê Santana, na Espanha. 1982 é a minha Caverna do Dragão. Queria ser o Mestre dos Magos. Sempre fui o unicórnio Uni, cujos balidos poucos compreendem. A mãe me levava em direção a uma das lojinhas. A puta recostada na laje chapiscada notou meus olhos ensandecidos em sua direção. Os peitos eram gigantescas bolas de fogo. Ao cruzá-la, a surpresa: despejou um dos seios para fora da blusa. A bolota branca reluziu e espalhou-se em mim. Estaquei tal um burro teimoso. Não mexia as pernas. O corpo teso à espera de algo que jamais aconteceria. A puta sorria. A mãe soltou a língua entre os dentes, inflou as bochechas: sua puta. Não lembro se a mãe já usava dentadura em 1982. Acho que não. Talvez tivesse apenas alguns dentes presos à gengiva. A palavra puta percorreu os becos da Riachuelo. A puta peituda gostou. Sorriu feito uma puta feliz. E deixou o peito balangando ao alcance da minha mão. Meus dedos nunca o alcançaram.
A fachada não inspira qualquer confiança. Amontoados, os móveis dificultam a passagem. Está tudo entulhado, sem qualquer lógica aparente. Percorro corredores estreitos. Plaquinhas de papel avisam que os móveis são de ponta de estoque — passíveis de pequenos defeitos na pintura ou nas peças. Não me importo. Gosto da confusão e dos móveis. Apenas uma vendedora corre para todos os lados. Os clientes surgem por trás de cristaleiras, guarda-roupas, cômodas. No segundo piso, estão as mesas. É fácil me decidir: a mesa de madeira crua com seis cadeiras cabe exatamente no meu sufocante orçamento. Vou levar esta. Negócio fechado. Volto à Riachuelo. O calor segue destruindo a fama da Curitiba fria e cinza. Coisa do passado. Talvez de 1982. Tenho pensado muito no ano-novo. Já que os maias erraram feio sobre o fim do mundo, é preciso esboçar projetos para 2013. Aproveito o trajeto entre as putas e a Biblioteca para organizar as coisas na minha confusa cabeça. O ano acaba. A cidade se esvazia. As putas têm mais dificuldades de encontrar clientes. Os taxistas reclamam do pouco serviço. Os motoristas se divertem com o trânsito sem congestionamentos. Curitiba é uma cidade melhor quando os curitibanos decidem deixá-la um pouco em paz.
Diante do Paço da Liberdade — o prédio histórico que já abrigou de tudo: prefeitos, museu, desocupados e, agora, um centro cultural —, decido desviar o trajeto. Entro na pastelaria Generoso. O chinês atrás do balcão não me reconhece. Trinta anos é muito tempo para um ser humano que vende pastéis. Digo-lhe antes de qualquer cumprimento: “Em 1982, meu pai levava os restos dos pastéis para casa. Aqueles que você não conseguia vender. Eu comia os pastéis molengas e gordurosos antes de ir pra escola. Tinham gosto de lesma”. O chinês não se mexe, não esboça movimento. Não entende absolutamente nada do que digo. Não faz ideia de que meu pai vendia flores à noite na praça. E, pela manhã, ganhava pastéis amanhecidos na bandeja de alumínio. Levava-os para os filhos. O chinês aponta o fundo da pastelaria. O banheiro é ali. Deixo-me cair sobre a banqueta e peço um pastel de carne. Vou ao banheiro. Na volta, encontro o pastel gorduroso num prato amarelo de plástico. Pago a conta e deixo o pastel intacto sobre o balcão. Uma lesma inerte, morta desde 1982. Saio e tomo novamente a direção da Biblioteca.
Cruzo a praça Tiradentes. A catedral foi pintada. Está feia. Parece uma velha com maquiagem de adolescente. Entro na biblioteca, cumprimento alguns funcionários e sigo para a minha sala. Sobre a mesa, a folha de rascunho. Enumero possíveis planos para 2013. Tenho obsessão por listas. Sublinho o último e mais importante projeto: resolver algumas questões pendentes em 1982. O telefone celular me assusta. É uma ligação da loja de móveis. A mesa será entregue amanhã à tarde. O calor amolece meu ânimo. Encosto a cabeça no tampo de vidro da mesa. Adormeço por alguns minutos.
E quando despertou, o ano de 1982 ainda estava lá.
Vindo de Rolândia (eta nome…), meu primeiro enderêço em Curitiba foi na Riachuelo nº 246….em fevereiro de 1970. Faz tempo…
Um psicanalista ajuda bem nessas horas.
muito bom a tempos não lia algo tao bem escrito
e a ilustração do teo ,filha da lizete muito boa tanbem
Há anos que nos perseguem por século.
Bela batalha do autor com sua Riachuelo.