por Célio Heitor Guimarães
Sebastião Salgado, depois de conviver mais de quatro décadas com os animais, concluiu que os bichos não têm nada de irracionais. Está convencido de que eles são tão racionais quanto nós, os chamados humanos. Se não mais.
Sebastião garante que os animais temem e atacam os humanos porque sabem que somos maus. E afirma que para convivermos com eles precisamos apenas aprender a conhecê-los e a eles demonstrar que também podemos ser, apesar de tudo, pacíficos e inofensivos.
No início do último domingo, Salgado contou a Roberto D’Avila – sem dúvida, o melhor entrevistador da tevê brasileira – que somente conseguiu fotografar de perto uma tartaruga gigantesca de Galápagos quando passou a rastejar como ela e em torno dela, dias a fio. O mesmo aconteceu com os crocodilos. Usando o mesmo método, com paciência e coragem, logrou aproximar-se de um bando de répteis, que não apenas consentiram com a aproximação como – jura – riram dele. E posaram com tranquilidade profissional.
Sebastião Salgado, para quem não sabe, é um sujeito extraordinário. Não apenas porque dedicou a vida correndo o mundo para registrar, em imagens de qualidade inigualável, na grandeza do preto-e-branco e sempre com a maior dignidade, o planeta Terra e as múltiplas facetas da vida sobre ele, sejam elas alegres, tristes, chocantes ou comoventes. Sebastião é um brasileiro que orgulha o Brasil. Mais: é uma pessoa que honra o ser humano.
Não obstante, é de uma simplicidade e de uma autenticidade desconcertantes. Nasceu (em 1944) em Aimorés, Minas Gerais, e apesar de ser hoje um cidadão do mundo, nunca perdeu o jeitinho mineiro. Fala manso e sabe o que diz. Formou-se em economia, mas acabou fotógrafo e fez da fotografia a sua vida. Garante que para tirar boas fotos é preciso ser paciente e sentir muito prazer. Já trabalhou para as maiores agências do mundo e recebeu os maiores prêmios concedidos ao fotojornalismo, mas a sua grande obra está reunida em publicações como Terra (1997), Trabalhadores (1997), Outras Américas (1999), Êxodos (2000), África (2007) e Gênesis (2013).
Sebastião ama a África tanto quanto o Brasil. Lá viu de muito perto pobreza, sofrimento, tragédia, ódio e violência. Nada pôde fazer. Era apenas um fotógrafo. Mas fez o registro. Achava que era a sua obrigação e que o mundo todo devia saber o que acontecia ali, ainda que soubesse que nenhuma foto, sozinha, pode mudar o que quer que seja na pobreza do mundo. No entanto, assegura que não trabalha com a miséria, mas com as pessoas mais pobres, pois elas são ricas em dignidade e buscam, de forma criativa, uma vida melhor. “Quero com isso provocar um debate” – destaca.
Foi na África de 1994, na época do grande genocídio de Ruanda, às margens do rio que separa o país da Tanzânia, que Sebastião quase foi morto. De repente, ele se viu cercado por guerrilheiros tutsis armados de enormes facões. O guia que acompanhava o fotógrafo empalideceu. Ao indagar dele o que ocorria, recebeu uma resposta que o gelou: “Eles estão achando que você é francês e aliado da facção hutu. Vão executá-lo”. Os hutus eram inimigos de morte dos tutsis. Sebastião agiu rápido: retirou do bolso o passaporte brasileiro e anunciou que era “do Brasil, da terra de Pelé”. Bastou os combatentes ouvirem o nome de Pelé para que a cena se modificasse. A descontração foi imediata e a ameaça se transformou em congraçamento. Talvez Pelé tenha demorado a saber, mas Sebastião Salgado faz questão de contar que ele lhe salvou a vida. No coração da velha África.
No Brasil, Sebastião tem missão diferente. Herdou dos pais um pedaço de terra no interior de Minas e, com a ajuda de Lélia, sua mulher, resolveu transformá-lo no primeiro parque nacional em terras completamente degradadas. Pretende rearborizar tudo com espécies da flora nativa. Era mais uma de suas utopias e vai levando o projeto adiante. É o seu Instituto Terra, que já começa a dar frutos: tem um viveiro com capacidade para um milhão de plantas por ano, das mais diversas espécies, que já começou a fornecer mudas para os programas ecológicos de Minas Gerais e do Espírito Santo. Faz mais: oferece orientação a guardas florestais, agricultores e prefeitos. E acolhe crianças de escolas da região, procurando sensibilizá-las, desde pequenas, para o problema do desmatamento.
A história pessoal de Sebastião Salgado é muito bonita. Mas ainda, de certa forma, desconhecida do público brasileiro. A jornalista francesa Isabelle Francq resolveu fazê-lo falar através da escrita dela. O resultado está em um pequeno volume, em descompasso com a grandeza do personagem: Sebastião Salgado – Da minha terra à Terra, edição nacional do original francês da Editora Paralela, presente nas boas livrarias e que recomendo com entusiasmo.
Os animais só querem sua parte, o homem quer tudo.
O animal, que já fomos, não existe mais, se existir , vai ser caçado,
assim como todos os seres puros de alma.