por Mario Sergio Conti
Fred Vargas entre as catástrofes ambientais e o ecossocialismo
Fred Vargas é conhecida pelos romances policiais, os mais vendidos na Europa, nos quais tramas emaranhadas viram modelos de suavidade narrativa. Mas, zooarqueóloga de formação, ela é reputada nos meios científicos como pesquisadora, autora de um clássico sobre a peste na Idade Média.
Há dez anos, num pequeno artigo, ela ligou o talento de narradora ao de cientista. O tema do opúsculo fugia às suas atividades profissionais, mas a mobilizava intelectual e afetivamente: a ecologia. Com apenas duas páginas, o escrito se tornou o seu texto mais conhecido.
O artiguinho deu origem a peças de teatro, teve frases estampadas em camisetas na China, foi declamado pela atriz Charlotte Gainsbourg na abertura da Conferência do Clima da ONU, no fim do ano passado. Por isso, compôs um minitratado de colapsologia, “L’Humanité en Péril” (Flammarion, 249 págs.).
Seu argumento é que a Terra vive uma terceira revolução, após a neolítica e a industrial, a da escassez de recursos que permitem a reprodução da natureza e, dentro dela, da nossa espécie. Ela consultou e cita 400 trabalhos científicos para embasar a conclusão do título do livro: a humanidade está em perigo.
Fred Vargas —pseudônimo de Frédérique Audoin-Rouzeau— não deixa pedra sobre pedra, ou melhor, podre sobre podre. Revolve os detritos que põem em cheque a existência do Homo sapiens e seu habitat. Ao combinar horror e sarcasmo, pinta uma paisagem de vitalidade tenebrosa, que remete a Bosch.
Aquecimento do planeta, exaustão das fontes de energia, envenenamento do solo e da água, hiperconsumo predatório, movimentos migratórios —a hecatombe ecológica aponta para os quatro cavaleiros tradicionais do apocalipse: peste, guerra, fome e morte. O chato é que é tudo verdade. E banal.
Veja-se, por exemplo, a Coca-Cola. Só a sua fábrica em San Cristóbal, no México, consome 250 milhões de litros d’água ao ano —enquanto falta água potável a 12 milhões de mexicanos. Sem água, eles bebem… Coca. Resultado: 70% dos mexicanos estão acima do peso, 33% são obesos e 13%, diabéticos.
O consumo do refrigerante no planeta é estimado em 350 bilhões de litros ao ano. Ela piora a saúde de milhões. Encarece os serviços médicos. Arrasa lençóis freáticos. Rios, oceanos, matas e cidades são tomados por garrafas PET, que não são biodegradáveis. Por que então as pessoas bebem Coca-Cola?
Porque, segundo a propaganda, o “fiiizzzz” de uma lata de Coca se abrindo proporciona o encontro de gente exuberante, garante liberdade e aventura, leva a lugares de sonho. Além do quê, dizem os economistas, a fabricação do veneno gera empregos, impostos, publicitários.
Fred Vargas não se contenta em melar a vida de quem toma Coca. A viagem de garrafas de vinho da Europa até aqui, ela nota, empesteia o ar de CO2. Quer um bife? Pois saiba que há 24 bilhões de animais em cativeiro —quatro para cada pessoa— entupidos de fertilizantes, dizimando matas.
A cada passo da catástrofe, “L’Humanité en Péril” informa a quantas andam as pesquisas científicas para diminuir os danos ambientais. Demonstra que a humanidade tem meios para sair da enrascada.
Seria preciso, porém, controlar a agroindústria. Consumir produtos locais. Restringir o transporte individual em veículos que usam energia não renovável. Adotar a alimentação vegetariana. Reciclar a água. Etc. Etc. Etc.
A fila infinita de et cetera implica na alteração do modo de vida de bilhões de pessoas. Para elas, o consumo de determinadas mercadorias —roupas, perfumes, celulares, carros etc.— está associado ao triunfo na vida. Não tê-las equivale a estar por fora, a ser ridículo, um perdedor.
O que Fred Vargas tem a dizer nesse quesito é pouco: 82% da riqueza mundial está no bolso de 1% da população. Daí ela tira a oposição entre “Nós”, os cidadão, e “Eles”, os megarricos, a quem interessa o status quo, porque podem comprar o seu bem-estar e salvação.
Ou seja, a lista de restrições voluntárias ao consumo que o livro propõe deveria se combinar com a eleição de políticos comprometidos com causas ambientais. Fica implícito o raciocínio de que é preciso chegar a alguma fórmula de decrescimento econômico, ou de reformismo, ou de ecossocialismo.
Ficam implícitos, igualmente, os pavores contraditórios que percorrem o mundo: de que o crescimento econômico seja estancado (como ocorre hoje no Brasil) por uma nova crise do capitalismo, ou que o desenvolvimento continue a se dar de maneira antiecológica.